quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Móveis, plantas, roupas e ela


Ela acordou naquela manhã, de tempo desbotado, com todo o seu habitual ritual matutino, mas algo parecia diferente. Talvez pelo tempo sem cor ou talvez seja por não ter reconhecido a imagem que via refletida no espelho. Sim, era ela, mas ao mesmo tempo não era. Tudo parecia igual, a mobília no lugar, as roupas nos cabides, as plantas na janela, o rosto inchado ao acordar. Mas estranhamente é como se necessitasse descobrir mais sobre aquela nova face que se mostrava para ela. Assombroso era pensar que tudo aquilo que conheceu durante a vida toda já não lhe servia mais, não cabia naquele quarto, naquela habitação.

Perdida não sabia nem ao menos por onde começar. Sabe-se lá quanto tempo demoraria para varrer toda aquela poeira dali: horas, dias, meses, quem sabe até mesmo anos. Se apavorou em angústia e ansiedade diante daquilo que estava por vir. Tudo se mostrava incerto demais, efêmero demais. O mundo parecia muito maior do que uma caixa agora, delicioso e apavorante. Iria mastiga-la ou amaciar sua carne suavemente? Decidiu voltar a dormir. Poderia ser sonho pálido, quem sabe. Mas a poeira continuava ali. Existindo e sendo tragada. Se espalhava cada vez mais pelos móveis, pelas roupas, pelas plantas, pelos poros. Às vezes era difícil respirar. O ambiente se tornara tóxico.

Ligava o ventilador quando precisava de mais ar circulando. Mas a falsa sensação de nova respiração só fazia com que tossisse ainda mais. Sabia que precisava varrer a poeira, arejar seu quarto. Entretanto, de alguma maneira, tinha medo do que aconteceria ao reconfigurar a atmosfera que já fazia tão parte de si que era quase como se fosse um pedaço de sua carne. A poeira sou eu, é parte da minha mobília, das minhas plantas, das minhas roupas, das minhas entranhas.

Mas estava decidida a cair no modo experimental. Se deixar levar. Se deixar escorrer pelos quatro cantos das paredes tal como chuva tropical. Ver o que mais restaria depois que removesse cada canto empoeirado e velho. E com as mãos tremulas segurava a vassoura. Doía, mas ao mesmo tempo aliviava. Encaixotou coisas demais em caixas demais. Pôs para fora em um gesto único e ao mesmo tempo múltiplo. Por fim abriu as janelas. Cores novas inventou ao olhar para a palheta que despontava bem na frente de seus olhos. Elas giravam e dançavam como em caleidoscópio. O quarto parecia outro, mas fazia par com a imagem que se refletia no espelho. 

Quando ela olhou ao redor, momentaneamente se sentiu só. Havia um eco ali. Sua voz voltava para dentro de si quando chamava. Não havia mais poeira, não havia mais coisas velhas que a constituíam. Ao mesmo tempo lhe cresceu uma sensação diferente. Amava a própria carne, o próprio sangue, o próprio invisível e até mesmo a sua própria loucura idiossincrática como a um amigo. Tudo estava exatamente onde deveria estar. E embora ainda desconhecidas as suas plantas, as suas roupas, os seus móveis e a sua carne, pertenciam unicamente a ela e isso era algo para se orgulhar. Ela. 



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